No mundo das artes, há obras que o conceito supera a execução. Muitas vezes o produtor tá embriagado na idéia e esquece que o negócio tem que ser bom pra valer a pena. O papel aceita tudo: Um musical de heróis ou vilões? Parece ótimo. Uma mockumentary sobre alienígenas? Porra, tô dentro. Um protagonista que é um NPC de videogame? Eu quero ver isso. Um conto de fadas de terror? É, talvez.
Infelizmente, nem toda boa idéia acaba em um bom resultado.
O conceito
O conceito de “Aqui” é completamente original: uma câmera fixa em um ponto único contando a história de tudo o que é visível dali. Sem trocar o ângulo de cena, jogando fora a facilidade que um movimento de câmera traria para mostrar uma reação, ou até mesmo a liberdade de um cenário novo. Nada disso.
Muitas vezes, escolher uma limitação para trabalhar em cima acaba florescendo a criatividade e novas soluções são encontradas para problemas que o conceito mesmo traz à produção.
É inegável que o conceito do filme é excelente. Talvez melhor que a execução.
A execução
Isso não quer dizer necessariamente que o filme é ruim. A execução de “Aqui” é primorosa.
Os efeitos especiais estão bem feitos o suficiente para esquecermos deles. E isso é um grande mérito já que o filme abusa da tecnologia de rejuvenescimento facial, que já trouxe resultados muito desastrosos em diversos outros filmes. Mas não aqui (com o perdão do trocadilho).
A edição é dinâmica, sem dar sossego à audiência. A mudança de uma cena para outra aproveita a imobilidade de câmera para mostrar diferentes quadros ao mesmo tempo. É tudo muito natural, mas bem inquieto. Muitas vezes a tela é dividida entre duas ou três histórias simultâneas, de diferentes épocas. Méritos também da montagem.
A montagem é fascinante, oscilando entre diferentes épocas, sem nunca mudar o ângulo de câmera. Ela serve à história. E a história vai e volta, não só entre os habitantes daquela casa, vistos daquele ponto de vista. Há também um núcleo de índios nativos antes da América ser a América. E há uma história nos Estados Unidos colonial, já tendo aquele lugar como uma vila, mas sem uma casa ali ainda.
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A história
O roteiro é legal o bastante para te deixar curioso em todas essas histórias, mesmo que não prenda profundamente em nenhuma delas. É interessante como elas se entrelaçam. Aquele mesmo ponto do universo foi palco de alegrias, lutos, tristezas, e toda sorte possível de sentimentos, por um grande número de pessoas.
Aliada com uma direção de arte que consegue mudar o ambiente bem o bastante para que você nunca fique perdido. É possível sempre saber em qual parte da história estamos: seja pelo televisor, que vai se modernizando, seja pela decoração da casa, seja porque tudo virou uma floresta…
Conseguir contar tanta coisa ao mesmo tempo, desde os dinossauros até a pandemia é um grande mérito de uma produção acostumada a trabalhos grandiosos.
Os nomes
Robert Zemeckis já não precisa provar nada pra ninguém faz tempo. Desde “De volta para o futuro”, talvez. Mesmo assim, o diretor não pára e parece sempre escolher trabalhos que o desafiam como cineasta.
Dessa vez, ele repete a parceria com Tom Hanks. E ainda coloca como par a Robin Wright, repetindo o casal principal de um dos seus maiores clássicos: Forrest Gump. A “coincidência” do trio principal está amplamente difundida no material promocional do filme, mas nem precisava. “Aqui” se sustenta por si só e pouca gente vai sair do cinema lembrando do clássico ganhador do Oscar de 1995.
A reflexão
Com tantos elogios, é óbvio que eu adorei “Aqui”. Reitero que talvez ainda ache o conceito melhor do que a execução, mas simplesmente porque eu não consigo parar de pensar na genialidade dele.
No final, o protagonismo não está nem em Tom Hanks, nem Robin Wright, nem no ótimo Paul Bettany (que tá no filme também, verdade). A casa é o personagem principal dessa história. É como se as vidas que lá habitaram fossem efêmeras, e talvez realmente sejam. Como namoradas em uma história de amor de um homem que nunca se casa.
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O apego ao lar é uma característica humana fascinante. O nosso porto-seguro, o lugar onde se criam memórias e onde tanta vida acontece. A quem mora numa casa alugada: você não é nada mais do que uma vírgula na história daquele imóvel.
Esse pensamento foi-se embora da sala de cinema comigo. Como um cara que já morou em diversos países e teve algumas passagens tão marcantes em alguns lares que eu amei tanto, é difícil não pensar como estão aqueles lugares agora. Era um pensamento meu recorrente na época da pandemia: eu ficava lembrando de meu cafofo em Berlim e pensando quem era o morador que estaria lá trancado dentro do quarto que um dia foi meu.
Não importa. Eu também estive lá sem pensar em quem esteve antes de mim. É bem provável que nossos imóveis durem mais do que nós mesmos. E eles não devem sentir nossa falta.